Currículo Vitae

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Poeta evadido e obstinado

Impetuoso e desassossegado

Poeta de quase tudo demisso

– Mas acima de tudo insubmisso

dinismoura

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Loriga



A Gonçalo Brito Cabral
Estou sozinhamente sentado num muro de granito,
Num muro igual a esses que sustêm valentemente
Os socalcos que te sustêm, Loriga.
Tu preferes chamar-lhes de cômbaros.
Concordo contigo quando dizes que cômbaro
É uma palavra mais sonante, mais rochosa,
Mais vibrante, mais enérgica, mais telúrica.
Eu acrescentaria ainda que é também mais poética.
– Direi portanto que estou sentado num cômbaro.
Diante dos meus olhos absortos,
Imperturbável, serena, sorridente,
Ali está ela, a bela anciã,
Sentada na sua poltrona de granito,
Com seu diadema incrustado de suaves névoas,
Olhando com placidez e deleitação
As ribeiras, os pinhais, o casario aconchegado
E este céu inexplicavelmente tão azul.
Ali está ela, a imponente filha da natureza,
Contando carinhosa e paciente
As suas histórias às fragas, aos pássaros,
Aos ventos e aos olhos que sabem escutá-la.
Cerca-me, banha-me uma doce, sadia e odorante
Mescla de fragâncias que vem de soltar-se
Dos giestais e dos urzedos.
Envolve-me o melódico
Zunzunar das abelhas,
O aprazível cantar dos grilos,
Embala-me o melopeico chilreio
Dos melros e pintassilgos.
– Oh! Em nenhum outro lugar eles chilreiam como aqui!
E que gáudio para a alma
Ouvir as cantigas das levadas –
Regam-me de alegria todos os meus sentidos!
Oh, que idílio, que festividade,
Que grinalda de deslumbres
Estar aqui neste exultante desfrute!

Toca um telemóvel.
 A súbitas, tudo se cala, desmantela, esvanece.
– Afinal – afiado gume de desilusão –,
Estou sentado na moleza de uma esponjosa cadeira…
Distante…

Acometido de um intenso surto de saudade,
Deu-me para devanear, delirar cenários,
Entressonhar cores, sons e aromas.
Por momentos, senti-me verdadeiramente ao pé de ti,
Contemplando a Serra da Estrela,
Contemplando encantado os teus encantos.
Loriga, soberbo milagre de granito e verdor,
Meu benquisto regaço onde cresci,
Desde que de ti me apartei,
Dentro de mim
Uma vila como tu a erigir comecei.
Todavia, esta Loriga
Que dentro de mim está a nascer,
Não se regerá nem pelo tempo
Nem tampouco pelas estações.
Nesta Loriga, todos os dias do ano
Nas ribeiras poderei nadar.
– Ribeiras que serão como as tuas:
Uma joalharia com ornatos de prata a fulgir
E cristais em mirífica crepitação.
Nesta Loriga, por diversas vezes será Natal.
– Natais que serão como os que aí deixei:
Consoada com a família, na mesa lauta
Muito bacalhau cozido, couves, e azeite a abençoar.
Depois, Missa do Galo à meia-noite,
O calor mágico dos tocos na fogueira a resplandecer,
O cantar das janeiras, e as filhoses
Confeiçoadas pela minha avó, que Deus tem.
Nesta Loriga, irei amiúde ao adro da igreja
Jogar à apanhada e apanhar aqueles
Que na infância não apanhei.
Nesta Loriga, todos os dias, ao acordar,
Irei à janela do meu quarto
Rechear os pulmões de ar.
– Um ar que será como o que aí se respira:
Um ar que, de tão puro,
Faz de ferro duro quaisquer pulmões.
Nesta Loriga, as noites serão sempre
De lua cheia e atulhadas de estrelas.
– Assim, todos os dias, ao anoitecer,
À Fândega rumarei para contemplar o luar
Dançando com o orvalho na Canada.
Nesta Loriga, em todas as madrugadas de domingo
Virei para as ruas ouvir a Amenta das Almas,
E com garganta ressonante
Cantarei também dolorosamente
O langue Estava a Mãe Dolorosa.
Nesta Loriga, todos os primeiros domingos de cada mês
Festejarei a Nossa Senhora da Guia.
– Será mesmamente igual à tua:
Haverá intermináveis procissões, estrepitantes foguetes,
Colchas sumptuosas pendendo das varandas,
Uma profusão de cravos, dálias e rosas
A jorrar das janelas,
E vistosos e fulgurantes fogos-de-artifício.
Nesta Loriga, nevará quando eu quiser.
– Terei uma neve como a tua:
De uma admirável alvinitência,
Com subtilezas de bailarina
E cheia de musicalidade ao cair.
Nesta Loriga, o sol, ao pôr-se,
Ficará pousado na linha de horizonte
O tempo que eu desejar.
– Um sol-posto que será
Tão inebriante como o teu:
Um bolbo candente a bordar
Radiosamente ígneas pétalas róseas no céu.
Loriga, saudoso torrão onde cresci,
Amado e venerado torrão
Nas faldas da Serra da Estrela,
Neste momento és em mim distância,
Lembrança e saudade a latejar,
Mas logo, logo serás proximidade,
Realidade, matéria e santuário
Nos cumes do que sinto por ti.
 dinismoura

3 comentários:

  1. Não sei se 'combaro' existe.Cômoro, sim...

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    Respostas
    1. Cômbaro é uma palavra loriguense ou seja " loriguês "
      Em Loriga, na Serra da Estrela, o cômbaro é um muro de granito que sustenta socalcos que ladeiam a vila.

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